.

.

.

.

domingo, 30 de novembro de 2014

Aldeia Avieira da Barreira da Bica

Por: Lurdes Véstia

     
         Mulheres Avieiras da Azinhaga, Golegã, de regresso a casa depois da venda do peixe

A Barreira da Bica, na foz do rio Alviela, encontra-se a cerca de dois quilómetros de Vale de Figueira, no concelho de Santarém, local onde se estabeleceu, durante décadas, uma colónia de pescadores Avieiros.
Ao local chamaram Barreira da Bica, pelo facto de existir, como hoje ainda existe, uma fonte de água pura vinda da encosta. A aldeia chegou a ser constituída por 28 barracas, adega, um forno comunitário (ainda existente) e os galinheiros que apenas guardavam os coelhos, visto que as galinhas viviam em plena liberdade. Por variados factores, como a poluição do rio Alviela, foi-se dando o abandono da aldeia até à desertificação total. A aldeia foi morrendo, sem gente, com as casas abandonadas, e com os barcos e apetrechos ao abandono no areal.
“Elizabete da Bica”
Elizabete nasceu em 1932, em Salvaterra de Magos, quando os seus pais, andavam na pesca do sável, mas foi em Vale de Figueira (Barreira da Bica) que foi registada. "Vivíamos numa casa de madeira com estacas ao pé do rio Alviela".
Uma pescadora que bem cedo conheceu a dureza do trabalho no campo, desperdiçando a infância para ajudar a família de nove irmãos. Aos 21 anos casou com J. C., que também trabalhava no campo, e decidiram abandonar o trabalho na terra que não lhes pertencia e ir ao chamamento do Tejo, seguindo o exemplo dos pais.
Passaram muitas dificuldades "Foi uma vida muito dura". "No verão, dentro do barco, era um calor insuportável. No inverno, um frio de gelar".
Engravidou um mês depois de casar e até dar à luz, continuou a viver dentro do barco no rio. Depois do parto, passou um mês em terra com o bebé nos braços, para criar. Quando o filho completou 6 anos de idade, Elizabete e J. decidiram mudar de vida e assentar em terra. O menino tinha que ir para a escola e o barco tornava-se cada vez mais pequeno e inóspito para servir de lar. Além disso, a saúde de Elizabete exigia cuidados acrescidos pois havia contraído uma doença pulmonar.
Construíram, com as suas próprias mãos, uma barraca de madeira na aldeia Avieira da Barreira da Bica, à beira Tejo, com o pouco dinheiro que conseguiram amealhar na dura vivência de pescadores.
Tiveram mais um filho, que em bebé revelava uma saúde débil. O casal não abandonou o barco. Continuou a dedicar-se à pesca e entregar-se á cansativa faina do dia-a-dia. Uma tempestade destruiu-lhes a barraca onde viviam e tiveram que construir outra.
Mais tarde, depois dos filhos criados, J. decidiu comprar um pedaço de terreno e construiu uma casa em Vale de Figueira. A vida melhorou significativamente e Elizabete não mais deixou a sua casa. Passados anos J. C. morreu afogado no Tejo ao tentar salvar das águas o velho barco, num dia de fortes chuvadas.
A história de Elizabete
A narração de “Elizabete da Bica” foi marcada por momentos de alguma confusão no discurso, no entanto as memórias foram surgindo e a história revelou-se plena de significações. Percebe-se que a história de vida de Elizabete se confunde com a de tantas outras mulheres que vão substituindo o papel de filha pelo de mãe e mais tarde pelo de avó. A história de Elizabete fala de uma mulher com fortes vínculos ao lado feminino da família, herdando dele o seu papel de cuidadora e zeladora das maleitas e mal-estar da família: (...) a nha mãe e a nha avó é que ensinavam isso tudo à gente (…) Já não consigo arrebanhar... depois rezava-se um Padre Nosso e uma Avé Maria... a nha avó sabia muito bem rezar. Ela era da Vieira, elas iam à missa e sabiam a dótrina. Ela sabia todas as rezas e sabia todas as coisas... Sabia o pé retorcido, o cóbrão... mas isso ainda eu faço também...”
Já no seu papel de avó, Elizabete, conta a história de uma mulher envelhecida partindo da comparação e consideração entre o passado e o presente: (…) Já tenho dito a uma neta que aí tenho, com 12 anos, “na tua idade eu já estava farta de trabalhar, em casa e tudo” . A nha mãe ia fazer a venda dela e eu fazia tudo em casa. Eu e outra irmã minha”.
O dia-a-dia narrado por Elizabete resultou na construção de três fortes grupos temáticos: as relações familiares, as práticas religiosas e o papel da mulher dentro da comunidade.
Relações familiares: Elizabete socorreu-se de vários personagens da família para falar de si. Elizabete fala da morte para designar as relações de parentesco com a pessoa morta e para se relacionar com ela: “Não conheci os mês avós porque o pai da nha mãe morreu afogado no mar e o pai do mê pai...quando o mê avô morreu a nha avó ficou grávida do mê pai. Nem ele conheceu o pai. A nha mãe era C. e o mê pai M. Eu sou prima carnal do mê marido. O mê sogro chamava-se A. C. e a nha sogra era E. F., ela não sabia o nome porque ficou sem mãe de pequenina e toda a gente a chamava de E. P. Mas ela na era E. P., era E. F. A nha mãe deixou uma irmã na Vieira. Na Vieira ainda lá há família. A família do mê pai era B”.
LV: B. há também em Alpiarça, no Patacão...
E: É tudo da nha família...
Ou ainda: (…) os pescadores de antigamente eram todos da Vieira... pois!... o mê avô morreu afogado lá no mar... foram treze de uma vez que morreram e o mê avô coitado nunca mais apareceu. Ópois a nha avó veio cá para o Tejo. Elas faziam uma safra lá no mar da Vieira e depois quando estava melhor cá vinham pra cá. Ópois acabaram por ficar, ficou cá ela e pronto! ficou cá muita gente. A nha avó ficou viúva com cinco filhos e ópois casou outra vez com outro homem... pronto! E era assim...”
Outro aspecto observado foi a comparação que é feita, durante o decurso da narração, entre os personagens da família e os demais: “O mê pai gostava muito de trabalhar e a nha mãe. Foi fome, mas a gente nunca passámos fome. Lá ao pé da gente havia muita gente que passava fome. Porque o mê pai e a nha mãe iam vender o peixe a Alcanhões, outra vez a Alpiarça, era onde calhava. E quando a nha mãe vinha, já tínhamos almoçado. Ê arranjava uns peixes, a gente tínhamos sempre uns roibaquinhos, arranjava aquilo de caldeirada, outras vezes sopas e batatas. Pronto!, a gente comíamos e criámos bem. Os mês irmãos era tudo gente grande, eu é que era mais baixa. Nunca passámos fome. Porque o mê pai era muito corajoso, mas havia daqueles que não se tiravam ali de pé de casa... pois! Eu sei!”
Este método de falar de si através das relações familiares evidencia a construção da sua identidade dentro destas relações. Ora semelhança ora diferença, Elizabete vai-se colocando como mãe, filha, irmã e neta dependendo das relações que mantinha com os personagens que com ela conviviam. 
No quadro das relações interpessoais Elizabete falou ainda na sua história deviolência doméstica, na falta de respeito nas relações entre homem e mulher, situação que era sentida e consentida em muitos lares Avieiros.
LV: Mas quem mandava lá em casa?
E: Dentro do barco eles respeitavam a gente e até gritávamos ordes…mas em casa…olhe lá… antes se uma mulher fosse a buscar o home à taberna, ia a levar porrada até casa….era uma ofensa muito grande!!!
LV: Eram as mulheres sempre que vendiam o peixe? Eram elas que geriam o dinheiro em casa ou eram os homens?
E: Eram elas. Eram as mulheres.
LV: E quando os homens precisavam de dinheiro para qualquer coisa?
E: Eles pediam às mulheres, pra fazer a barba...
E depois:
LV: Mas havia muita violência doméstica?
E: Ora…havia aquelas que levavam todos os dias !!! O mê hóme deu-me muitas vezes e às vezes até me dizia “Ó Elizabete amanhã levas mais!!! Porque sempre que te bato no outro dia matas mais uma galinha” ...Era assim…felizmente já não é.
Ao falar sobre a violência doméstica, sentida por tantas mulheres Avieiras, Elizabete espelha a divisão entre géneros, no qual o homem é reconhecido como tendo mais poder social do que a mulher que consegue aumentar o espaço para gerir as suas tarefas sociais mas não mudar a sua identidade.
A mulher Avieira revela-se-nos assim como indefesa, aceitadora das agressões, resignada e votada ao silêncio.
Práticas religiosas: Durante toda a narrativa Elizabete deixou bem clara a importância das práticas religiosas entre a comunidade Avieira. As crenças/ritos revelam aqui, positiva ou negativamente, a integração social, a influência dos laços familiares, os valores vigentes, a relação comunitária, entre outras. Na origem destas expressões populares pode-se, de facto, descobrir a consciência dos limites humanos perante forças transcendentes e a necessidade de dar sentido, apoio e organização à vida humana, sobretudo em alturas de perigo ou nos momentos cruciais da vida. Espelham, portanto, os anseios, os sofrimentos e as esperanças dos pescadores Avieiros.
 LV: Nessa altura não frequentavam muito a igreja, como é que era?
E: Na, na frequentávamos.
LV: Vocês nunca iam à missa?
E: Nunca íamos lá. Chegaram a ir lá fazer missas campais, na sei se já era casada ou se ainda era solteira. Até lá iam padres que andavam ainda no Seminário fazer missas campais. Iam lá ao pá da barraca do mê compadre Albertino fazer as missas campais.
LV: Tirando as missas campais, nem por mortes, nem por casamentos, nem por nascimentos os padres lá iam...Todos eram baptizados?
E: Todos.
LV: O senhor padre costumava vir aqui?
E: Na, vinha a gente lá.
A actividade piscatória e a ajuda divina: A actividade piscatória é o ser e o ter destas comunidades e o seu fruto dependia quer do esforço de cada um quer também da vontade dos “deuses”. O dia-a-dia era marcado por actos e atitudes que remetiam, muitas vezes, para o transcendental. Num universo povoado de medos e angústias, as forças malfazejas assumiam um papel importante.
Para enfrentar os temporais e as trovoadas recorriam a “receitas” verbais. Estes ritos evocam, comummente, acontecimentos sobrenaturais ligados à origem do mundo ou da própria religião.
Isto nos demonstra Elizabete:
LV: Vocês conheciam algumas daquelas rezas, a Santa Bárbara ou a S. Gerónimo?
E: Cantava muito isso...a nha avó é que ensinava isso tudo à gente...
Santa Bárbara se alevantou
Seu pé direito calçou...
Nosso Senhor (ou Nossa Senhora) encontrou...
Onde vais Santa Bárbara?
Vou espalhar a trovoada...
Santa Bárbara bendita
No céu está escrita...

Durante a entrevista e pelas palavras de Elizabete, ou até nos silêncios, sente-se que, em alguns momentos da sua vida, sentiu cansaço pelos diversos papéis sociais a que esteve obrigada. Este cansaço deveu-se sobretudo à dupla jornada de trabalho que Elizabete executava, pois para além das vulgares actividades domésticas, ela assumia o trabalho fora de casa e principalmente o trabalho nocturno da actividade

Sem comentários: