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sábado, 26 de abril de 2014

Em que raio de país é que vivemos?

A fome nas escolas, no diário de um professor


Amigo próximo e assinante da primeira hora de O Ribatejo, trouxe-me o texto em mão. Carregava a expressão de um sentimento misto de comoção e revolta, antes de me estender a folha de papel impresso, numa declaração impositiva: “tens que dar conta disto aos leitores do teu jornal”. Passo ao relato integral do que então li, igualmente comovido e indignado. Um texto assinado por Samuel Sousa, professor do ensino básico:

“Ontem, uma mãe lavada em lágrimas veio ter comigo à porta da escola. Que não tinha um tostão em casa, ela e o marido estão desempregados e, até ao fim do mês, tem 2 litros de leite e meia dúzia de batatas para dar aos dois filhos. Acontece que o mais velho é meu aluno. Anda no 7.º ano, tem 12 anos mas, pela estrutura física, dir-se-ia que não tem mais de 10. Como é óbvio, fiquei chocado. Ainda lhe disse que não sou o director de turma do miúdo e que não podia fazer nada, a não ser alertar quem de direito, mas ela também não queria nada a não ser desabafar. De vez em quando, dão-lhe dois ou três pães na padaria, que ela distribui conforme pode para que os miúdos não vão de estômago vazio para a escola. Quando está completamente desesperada, como nos últimos dias, ganha coragem e recorre à instituição aqui da vila – oferecem refeições quentes aos mais necessitados. De resto, não conta a ninguém a situação em que vive, nem mesmo aos vizinhos, porque tem vergonha. Se existe pobreza envergonhada, aqui está ela em toda a sua plenitude. Sabe que pode contar com a escola. Os miúdos têm ambos Escalão A, porque o desemprego já se prolonga há mais de um ano (quem quer duas pessoas com 45 anos de idade e habilitações ao nível da 4ª classe?). Dão-lhes o pequeno-almoço na escola e dão-lhes o almoço e o lanche. O pior é à noite e sobretudo ao fim-de-semana. Quantas vezes aquelas duas crianças foram para a cama com meio copo de leite no estômago, misturado com o sal das suas lágrimas… Sem saber o que dizer, segurei-a pela mão e meti-lhe 10 euros no bolso. Começou por recusar, mas aceitou emocionada. Despediu-se a chorar, dizendo que tinha vindo ter comigo apenas por causa da mensagem que eu enviara na caderneta. Onde eu dizia, de forma dura, “o seu educando não está minimamente concentrado nas aulas e, não raras vezes, deita a cabeça no tampo da mesa como se estivesse a dormir”. Aí, já não respondi. Senti-me culpado. Muito culpado por nunca ter reparado nesta situação dramática. Mas com oito turmas e quase 200 alunos, como podia ter reparado? É este o Portugal de sucesso dos nossos governantes. É este o Portugal dos nossos filhos”.
A revolta do professor Manuel Sousa é a nossa revolta. Quantas famílias estarão hoje na situação aqui descrita? Não podemos conformar-nos com o destino de pobreza a que nos querem condenar. Há que agir, antes que os cravos murchem.
De: Joaquim Duarte/Director do semanário 'O Ribatejo'

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