.

.

.

.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

O “AZAR” DE TER CONVICÇÕES



Por: Anabela Melão

Andei uns dias a degustar a ideia de partilhar ou não convosco uma experiência recente, já desta semana. Há factos e pessoas que tentamos esquecer por fazerem parte de um período negro das nossas vidas. Paguei demasiado caro na minha carreira por não me “adaptar” às regras instituídas. E, agora, com o meu próprio projecto empresarial, dou-me por feliz de ter deixado de me sentir comportamentalmente claustrofóbica. Mas os factos e as pessoas que marcam negativamente as nossas vidas fazem os possíveis e os impossíveis para que não os esqueçamos.
Com um currículo que me escuso de comentar, mas de constam louvores, recomendações, nomeações e primeiros lugares em provas de conhecimentos concursais para carreiras inspectivas e de auditoria, a tecnocracia dirigente tentou um dia que justificasse amizades e conversas. Amizades e conversas pessoais. Duas colegas ouviram-nas, relataram-nas e deturparam-nas. Daí resultou um processo disciplinar com um mês de suspensão. De que não me defendi sequer por achar o objecto do mesmo absolutamente vil e torpe. Claro que este único facto – o de ter conversas não reveladas com empreiteiros de obras públicas - , de que resultou a denúncia de actos que viriam a ser conhecidos do grande público, com acusações confirmadas pelos tribunais - ainda hoje me é jogado em cara, como se tivesse tido uma atitude condenável. Não ponho em causa os meus amigos nem exponho as conversas que tenho com eles. Uma norma de bom sendo e de educação desconhecida de muita gente, percebi. Não era aquele o momento para esclarecer equívocos e deixei que cada um tirasse as devidas interpretações, a seu tempo. Uns tiraram outros não. Uns perceberam outros nem por isso.
E eis que esta semana, numa das entidades para as quais prestava serviços o assunto surge porque um colega (daqueles que com certeza detém aquele espírito de “camaradagem” especial) omitindo quaisquer factos que relevassem na minha vida profissional, incluindo os tais louvores, os convites por gente reconhecidamente competente para certos lugares, os primeiros lugares nas provas escritas, e os anos seguidos de Muito Bom, se lembrou de espalhar a má-lingua, e voltar a trazer à tona um telefonema (tido na sala de duas colegas, entre o meu gabinete e o corredor, às quais, por acaso, até pedi permissão para o fazer, e fi-lo inclusivamente na sua presença, tal era a “malfeitoria” da “falta”!) se lembra de vir recordar o caso a um dos membros do Executivo da Junta de Freguesia em questão, como se fosse digno de registo criminal.
Qualquer um que tenha acesso ao processo verá que é kafkiano, e que a sua base é a da troca de telefonemas com empreiteiros de obras públicas – constantes e retirados de uma lista de telefonemas efectuados por mim no local de trabalho da minha linha pessoal, entre muitos outros, desde farmácias a mercearias, vizinhos, família, presidentes da câmara, ministros etc e tal. E assim, ainda hoje muitos se questionam o que estaria na base do dito processo disciplinar. Pois é como digo, quem a ele quiser aceder é só dizer. E o teor do despacho é digno de uma trágico-comédia: “um comportamento susceptível de pôr em causa a imagem de isenção” do organismo. Ou seja, a dita convivência com os empreiteiros de obras públicas, logo eu, que entre namoro e divórcio, tive uma relação pessoal e afectiva de vinte anos com um, pai das minhas filhas.
Faço questão de contar o episódio para que não me volte a ser arremessado como arma. Todos os que me conhecem sabem que a minha vida gira à volta do trabalho, da família e de outras causas. Sem tempo, portanto, para passar a vida a explicar o que é óbvio: amigos e conhecidos denunciaram-me, na sequência de ter exercido o cargo de subinspectora-geral de Obras Públicas, irregularidades no sector e concretamente quanto a um processo que, como digo, mais tarde se veio a tornar público e que foi objecto de julgamento judiciário. Comentar os factos, na altura, a estranhos, ainda que fossem chefias e as detivessem funções num organismo dito de controlo, de nada serviria – a não ser a mera coscuvilhice - e implicaria trair a confiança de quem os expôs e perturbar as investigações que haviam de ter lugar em tempo oportuno. Como tiveram. Às vezes temos de sacrificar a carreira quando outros valores, como a amizade e o interesse público, se erguem em prejuízo desta. É o preço de ter valores e convicções.
Quanto ao resto …. Os cães ladram e a caravana passa!